A prática da tevilá, amplamente conhecida no meio religioso como “batismo”, deve ser compreendida à luz do contexto histórico do Segundo Templo e do pensamento dos emissários de Yeshua. Tratava-se de um rito purificatório realizado por diversos motivos: purificação após impurezas rituais, conversão de gentios ao judaísmo, preparação para participação em festas sagradas ou mesmo como sinal de arrependimento e renovação da aliança com o ETERNO.
No judaísmo do Segundo Templo, a tevilá expandiu-se significativamente. Para os fariseus, a pureza ritual não se limitava apenas a momentos específicos da vida cotidiana, como o cumprimento das leis da pureza de alimentos ou o estado de impureza ritual após certos tipos de contato físico. A tevilá passou a ser vista como uma prática devocional que refletia um compromisso diário com a santidade e a obediência à Torá. Entre eles, havia duas escolas principais: a de Shammai, que exigia a circuncisão antes da tevilá para os gentios convertidos ao judaísmo (prosélitos), e a de Hillel, que aceitava a tevilá como primeiro passo, seguido pelo ensino progressivo dos mandamentos.
Os essênios, outra seita judaica da época, também praticavam a tevilá, mas com uma ênfase mais radical, como um meio de separação do mundo profano. Para eles, a imersão não era apenas uma questão de pureza ritual, mas também uma maneira de indicar a entrada em uma nova vida ou comunidade, uma transição para um estado mais elevado de pureza espiritual. Refletia tanto a necessidade de pureza externa quanto a transformação interna, e ela se tornou um elemento central das práticas devocionais diárias de muitos judeus, especialmente os mais zelosos na observância da Torá. Essa prática foi, sem dúvida, uma das bases que influenciou a forma como o batismo foi compreendido e praticado posteriormente.
Nesse contexto, surge João, o batizador, cuja teologia se assemelhava à dos essênios. Sua imersão não visava apenas à purificação ritual, mas à teshuvá (arrependimento diante da proximidade do Reino dos Céus). Ele convocava o povo às margens do rio Jordão, local carregado de significado espiritual — afinal, foi por esse rio que Israel atravessou antes de entrar na Terra Prometida com Josué. Assim, a imersão remetia a uma travessia simbólica, a um renascimento nacional e pessoal. Quando Yeshua se apresenta a João para ser imerso, não o faz por arrependimento ou necessidade de purificação. Sua atitude representa identificação com o povo, santificação das águas como meio de transformação e inauguração pública de seu ministério. Ao se batizar, consagra a prática como marco espiritual de morte para a velha natureza e entrada em uma nova realidade em aliança com o ETERNO (Romanos 6:3-6).
No livro de Romanos, capítulo 6, Paulo afirma que o batismo nos moldes nazarenos representa morrer para o mundo e renascer em novidade de vida com Yeshua. A imersão, nesse sentido, é o símbolo do abandono da velha vida e da entrada em um novo nascimento, sendo uma expressão externa de transformação interior. Seria incorreto dizer que Yeshua se batizou por nós, como se tivéssemos sido substituídos nesse ato. O próprio texto bíblico chama os discípulos à prática, e a tradição apostólica a manteve desde o início.
No segundo capítulo de Atos, por exemplo, vê-se o episódio em que cerca de três mil pessoas se batizaram. Alguns argumentam que seria inviável imergir tantas pessoas em águas correntes, devido à escassez de rios próximos a Jerusalém. Essa suposição, porém, ignora achados arqueológicos. Ao redor do Templo, existiam inúmeros micvaot (plural de micvá), reservatórios de água construídos em alvenaria ou pedra, seguindo regras específicas para garantir a pureza ritual. Eram projetados para conter águas vivas — ou seja, com fluxo constante ou provenientes de fontes naturais, como chuva ou nascentes. Assim, o batismo dessas três mil pessoas não seria impraticável, mas uma aplicação da tradição da tevilá sob uma nova perspectiva, consolidando a comunidade messiânica emergente. Em outras palavras, os apóstolos não carregaram baldes de água para aspergir sobre o povo, pois isso contrariava os padrões de pureza do rito, que deveria ser em águas vivas.
A tevilá nunca era realizada por imposição de mãos ou com auxílio físico de outra pessoa. Era um ato pessoal e consciente: o indivíduo descia sozinho às águas de uma micvê — reservatório de águas vivas — e submergia completamente o corpo, garantindo que nenhuma parte ficasse descoberta. O procedimento era feito com total pudor, geralmente sem roupas, com duas ou três testemunhas à distância para validar o rito sem violar a privacidade. O toque físico de outra pessoa era proibido, pois invalidava a pureza do ato e poderia constranger o participante. Portanto, a ideia moderna de “ser batizado por alguém”, com imposição de mãos e fórmulas fixas, não tem raízes no judaísmo do tempo de Yeshua.
A literatura judaica confirma essa perspectiva:
“Depois disso, ele imerge completamente diante de três sábios... e eles se retiram para que não vejam sua nudez.” (Maimônides — Mishné Torá, Hilchot Isurei Biah 14:6).
“A tevilá não é válida se uma parte do corpo não estiver em contato com a água; por isso, o corpo deve estar completamente descoberto e submerso, sem nenhuma barreira.” (Rabi Eliezer ben Jacob — Tosefta, Mikvaot 7:12).
A estrutura das micvaot em Jerusalém já estava preparada para essa prática. Muitas foram encontradas ao redor do Monte do Templo, especialmente próximas aos portões sul, por onde os peregrinos subiam para adorar. Essas instalações seguiam exigências haláchicas, com divisórias, entradas separadas para homens e mulheres, escadarias de corrimão duplo (uma para descida, outra para subida) e compartimentos privados que garantiam recato. A prática era tão comum que havia um sistema logístico eficiente para milhares de imersões, principalmente durante festas como Shavuot (Festa das Semanas — “Pentecostes”), quando Jerusalém recebia grandes multidões. Assim, mesmo com três mil pessoas respondendo ao chamado de Pedro em Atos 2, é plausível imaginar cada uma se imergindo de forma respeitosa e ordenada. O costume do povo, aliado à estrutura urbana e à reverência ao ETERNO, tornava isso possível sem escândalo ou constrangimento.
Ao analisar os textos bíblicos, percebe-se que os emissários de Yeshua seguiram o padrão da tradição judaica do Segundo Templo. Sua função não era mergulhar fisicamente as pessoas, mas exortá-las ao arrependimento, ensinar os fundamentos da fé e testemunhar sua resposta pública. O caso de Paulo é revelador: em Atos 22:16, Ananias diz: “Levanta-te, batiza-te e lava os teus pecados, invocando o nome dele.” A instrução não é para que Ananias realize o batismo, mas para que Paulo mesmo se levante e se imerja. A ideia de que o oficiante mergulha a pessoa (como em algumas tradições cristãs modernas) é uma evolução posterior e não reflete a prática judaica original.
Em Atos 2, Pedro exorta a multidão a se arrepender e a “ser batizada em nome de Yeshua para remissão dos pecados”. Não se diz que ele batizou milhares — o que seria logisticamente impossível. Se ele ou os outros apóstolos fossem os batizadores, levaria mais de um dia para imergir cada indivíduo. Assim, é mais coerente entender que instruíram homens e mulheres a se batizarem nas micvaot ao redor do Templo. Era natural que, ao ouvirem a mensagem, os que criam se dirigissem individualmente às águas, conforme o costume judaico. A expressão “ser batizado” deve ser entendida como “submeter-se à tevilá”, não como “ser mergulhado por alguém”.
A menção de que os discípulos batizavam “em nome de Yeshua” também deve ser interpretada no contexto semítico. No pensamento hebraico, agir “em nome” de alguém significa fazê-lo sob sua autoridade, sua aliança, fidelidade, ensino ou mérito. Assim, a tevilá em nome de Yeshua, ou como descrito em Mateus 28:19, não eram fórmulas litúrgicas, mas uma declaração de fé: o indivíduo se submetia aos ensinamentos de Yeshua, reconhecia-O como Messias e comprometia-se com Seu caminho de obediência à Torá. Frases como “eu te batizo em nome de Yeshua” ou “eu te batizo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”, não faziam parte do vocabulário do Segundo Templo, dado que não podia contato físico durante a imersão.
Alguns questionam esse entendimento citando João 4:2, que diz que Yeshua não batizava, mas seus discípulos sim. Contudo, como visto, era proibido o contato físico durante a imersão. Portanto, o correto é entender que os discípulos pregavam o arrependimento, orientavam e acompanhavam os batizandos até as águas, testemunhando publicamente sua fé. Em outras palavras, mesmo ao “batizar”, não conduziam fisicamente a imersão, mas atuavam como mestres e testemunhas da transformação espiritual dos que se uniam ao Caminho.
Para validar ainda mais esse entendimento, a Torá prescreve a imersão pessoal para purificação em diversos contextos, como em Levítico 15 e Números 19. A instrução é clara: “lavará sua carne em água”. O verbo está sempre no reflexivo, indicando que o próprio indivíduo se banha. Nunca se diz que outro deve lavá-lo ou mergulhá-lo. Essa linguagem foi mantida pelos nazarenos, que viam a tevilá como sinal de arrependimento, limpeza espiritual e renovação do compromisso com os ensinamentos da Torá.
É importante esclarecer que, embora a halachá judaica exigisse que a tevilá fosse feita sem roupas, isso jamais significou que os participantes se expunham publicamente. A tradição judaica sempre zelou pelo recato (tsniut), mesmo em ritos de purificação. No caso de João, o batizador, devemos entender que a geografia do rio Jordão, com suas margens irregulares, vegetação abundante e áreas mais profundas afastadas da vista direta, permitia que as pessoas se afastassem da margem e realizassem a tevilá com privacidade. Mesmo em locais naturais, o povo judeu sabia organizar-se com ordem e pudor, aguardando sua vez e usando a topografia ou recursos improvisados (como mantos ou áreas cobertas por árvores e pedras) para garantir que ninguém fosse exposto. Em algumas tradições, como entre os essênios, havia até roupas especiais para a imersão, removidas com discrição pouco antes do mergulho e recolocadas imediatamente após. Portanto, não havia qualquer tipo de nudez pública entre os que se purificavam no Jordão; ao contrário, tudo era feito com grande reverência, respeito e modéstia, conforme o espírito da Torá e das práticas judaicas do Segundo Templo.
Em resumo, a tevilá, conforme praticada no judaísmo do Segundo Templo, era um ato de purificação ritual realizado de forma autônoma, sem qualquer intervenção física de terceiros. A própria pessoa realizava sua imersão completa, enquanto um líder ou testemunha apenas observava à distância para confirmar que o corpo havia sido totalmente submerso, conforme exigido pelas leis de pureza. Mesmo em contextos de arrependimento ou conversão, o contato físico era estritamente evitado, em respeito às normas de modéstia e santidade. Com o passar do tempo, especialmente a partir do século II, a teologia cristã influenciada pelo pensamento greco-romano, começou a se afastar drasticamente desses moldes originais. O batismo, que inicialmente se fundamentava nos princípios judaicos, passou a ser administrado por ministros ou bispos, com imposição de mãos, orações e imersão ou aspersão feitas por outra pessoa. Assim surgiu o chamado “batismo passivo”, refletindo não apenas uma mudança litúrgica, mas uma transformação teológica que rompeu com as raízes judaicas da prática e instituiu uma estrutura clerical centralizadora, distanciando-se da simplicidade e da pureza ritual que marcavam a tradição original.
A tevilá permanece válida como expressão de arrependimento e renovação espiritual, mas deve ser compreendida e praticada em seu contexto original. Preservar esse entendimento é essencial para manter a integridade das Escrituras e a fidelidade à tradição judaica da qual Yeshua e Seus discípulos jamais se afastaram.
Seja iluminado!!!
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