Por Cleiton Gomes
Ao longo da história do pensamento religioso, termos que expressam aspectos essenciais da fé muitas vezes foram alvo de questionamentos quanto à sua origem e legitimidade. Entre eles, a palavra “graça” tem sido, em determinados círculos, alvo de críticas por suposta associação com elementos da mitologia pagã, especialmente a grega. Há quem alegue que o uso da palavra "graça", especialmente na forma grega charis (χάρις), é impróprio por estar vinculada às chamadas “Três Graças” ou “Chárites” da mitologia helênica, figuras divinas que simbolizavam beleza, encanto e generosidade. A acusação, portanto, é que o termo carrega em si um traço pagão que comprometeria a pureza do discurso espiritual autêntico. No entanto, essa afirmação, embora aparentemente convincente em seu apelo etimológico, não se sustenta à luz de uma análise séria, linguística, histórica e contextual das Escrituras, sobretudo a partir do pensamento hebraico, matriz do qual brotam os fundamentos da fé dos profetas, dos salmistas e dos primeiros discípulos de Yeshua.
A raiz do termo “graça” nas Escrituras hebraicas está no vocábulo "chen" (חֵן), que aparece amplamente em todo o Tanach. Trata-se de um termo rico em significados, e pode ser traduzido como favor, bondade, benevolência, beleza moral, encantamento ou misericórdia. Outro termo ainda mais profundo é "chesed" (חֶסֶד), que transmite a ideia de amor leal, graça constante, bondade pactual e fidelidade inabalável. Ambas as palavras são usadas para descrever o relacionamento do ETERNO com seu povo, revelando a natureza compassiva e amorosa do Criador desde os primórdios da revelação. Ao dizer que Noach achou "chen" aos olhos do ETERNO (Gênesis 6:8), o texto não está introduzindo um novo conceito, mas sim revelando uma característica perene da interação entre o ETERNO e os seres humanos: o favor imerecido, a inclinação bondosa de um Ser justo em direção ao arrependido.
A despeito da alegação de que a palavra “graça” estaria contaminada por sua semelhança fonética ou etimológica com elementos da mitologia pagã, como as “Chárites”, é preciso entender que o significado de um termo é determinado pelo uso contextual e intencional, não por suas possíveis associações culturais externas. O grego koiné, idioma em que foram redigidos muitos textos do período do Segundo Templo e dos escritos dos discípulos de Yeshua, era a língua franca da época e, portanto, utilizada não para importar conceitos pagãos, mas para traduzir os conceitos espirituais hebraicos para um público mais amplo. Nesse sentido, o termo grego charis foi usado para transmitir o sentido da palavra hebraica chen, e não para importar o simbolismo das divindades mitológicas. É o mesmo que dizer que, por utilizarmos palavras como "planeta", "música" ou "escola", herdadas do vocabulário grego, estaríamos necessariamente inserindo conteúdo idolátrico em nossas conversas — o que é, evidentemente, um absurdo.
O conteúdo espiritual de uma palavra, quando usado pelas Escrituras ou pelos ensinamentos dos justos, purifica sua forma e redefine seu significado. A fé hebraica sempre foi capaz de transformar símbolos ao incorporá-los em contextos sagrados. Por isso, quando os escritos dos discípulos de Yeshua falam que “a graça e a verdade vieram por meio de Yeshua” (João 1:17), não estão introduzindo um termo pagão, mas reinterpretando, com profundidade messiânica, a mesma graça que foi proclamada no Sinai: “Compassivo e cheio de graça é o ETERNO, tardio em irar-se e abundante em bondade e verdade” (Êxodo 34:6). A correspondência entre os textos é evidente: graça e verdade não são novidade, mas manifestação plena do caráter do Criador, agora revelado com intensidade em Yeshua, que é a Torá viva.
Portanto, a acusação de que o uso da palavra graça, seja em português ou em grego, está enraizada no paganismo é uma falácia etimológica. Trata-se de um argumento que confunde forma com essência e ignora o processo histórico de tradução e comunicação entre línguas e culturas distintas. O uso do termo charis nos escritos do período do Segundo Templo e nos círculos judaicos não significa uma rendição à cultura grega, mas sim uma apropriação intencional de um vocabulário disponível para expressar verdades profundas da fé hebraica. Assim, rejeitar a palavra “graça” por suas supostas associações pagãs é perder de vista o seu significado sagrado, revelado já nas primeiras páginas do Tanach, confirmado nos salmos e profecias, e vivido na plenitude por aqueles que andam nos caminhos da compaixão, da justiça e da fidelidade ensinadas pela Torá.
Seja iluminado!!!
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