Livro de Enoque: o misterioso livro que ficou de fora da Bíblia

Por Cleiton Gomes 


O Livro de Enoque é um texto antigo que contém profecias e visões apocalípticas atribuídas a Enoque, um personagem bíblico. O livro descreve visões de Enoque em sonhos, incluindo a destruição da Terra e uma narrativa da história da humanidade e de Israel até o fim dos tempos. Também descreve a visita de Enoque ao céu em forma de visão e suas revelações. O texto enfatiza a vinda do Filho do Homem e é considerado uma expressão da literatura apocalíptica como esperança para os humildes.

O debate sobre a canonicidade do Livro de Enoque é complexo. Enquanto algumas comunidades o consideram parte de suas Escrituras (ex: Igreja Etíope), outras não o reconhecem como canônico, isto é, que não possui origem divina e não é oficialmente reconhecido como parte da coleção de textos considerados sagrados. Alguns argumentam que sua exclusão foi arbitrária, enquanto outros afirmam que as diferenças teológicas substanciais justificam sua ausência.

Embora a maioria dos estudiosos não o reconheça como parte do cânone religioso, o Livro de Enoque possui nuances que devem ser analisadas sem fazer vista grossa. Ou seja, há fatos que mostram que os primeiros discípulos de Yeshua reconheciam eventos que hoje podemos ler no Livro de Enoque. Qualquer pessoa atenta irá ler o livro de Enoque e, tendo conhecimento prévio de tudo que existe no “Novo Testamento”, perceberá que existem mais de 120 citações do livro de Enoque ali, por exemplo: Judas 14-15 está provavelmente citando 1 Enoque 1:9. Isso é mera coincidência?

Entrando na parte mais acadêmica, Tertuliano (160 a 220 DC), um teólogo proeminente da Igreja primitiva, menciona fatos sobre Enoque em seu livro:

“Estou ciente de que o Livro de Enoque […] não é aceito porque não é admitido no cânon judaico. Suponho que não seja aceito porque eles não pensaram que um livro escrito antes do dilúvio pudesse ter sobrevivido à catástrofe que destruiu o mundo inteiro. Se esse for o motivo, lembre-se de que Noé era bisneto de Enoque e sobrevivente do dilúvio. Ele teria crescido na tradição da família e o nome de Enoque seria uma palavra familiar e ele certamente se lembraria da graça que seu antepassado desfrutava diante de Deus e da reputação de toda a sua pregação, especialmente desde que Enoque deu o comando a seu pai […] Portanto, Agora, supondo que Noé não pudesse ter esse conhecimento diretamente, ainda haveria outra razão para justificar nossa afirmação da genuinidade deste livro: ele poderia facilmente reescrevê-lo sob a inspiração do Espírito depois de ter sido destruído pela violência do dilúvio, assim como, quando Jerusalém foi destruída pelas mãos dos babilônios, todos os documentos da literatura judaica são conhecidos por terem sido restaurados por Esdras. Mas, como Enoque neste mesmo livro nos fala de nosso Senhor, não devemos rejeitar nada que realmente nos pertença. Não lemos que toda palavra das Escrituras útil para edificação é divinamente inspirada? 

Como vocês sabem muito bem, foi posteriormente rejeitado pelos judeus pela mesma razão que os levou a rejeitar quase todas as outras partes que profetizavam sobre Cristo. Agora, não é de surpreender que eles se recusaram a aceitar certas Escrituras que falavam Dele quando estavam destinadas a não recebê-Lo quando Ele próprio falava com elas. A tudo o que podemos acrescentar, o fato de termos; um testemunho de Enoque na Epístola de Judas, o Apóstolo.” (Tertuliano de Cartago. Vestuário Feminino, 2019, capítulo 3: 1-3).

Em um sentido quase idêntico ao que Tertuliano escreveu, o  Shimʼon Bar Yochai (o autor do Zohar – o livro do esplendor), ensina que os judeus mantiveram o livro de Enoque em segredo, porque para eles este livro só poderia ser interpretado pelos sábios de seu próprio povo. E que este documento não poderia cair nas mãos dos leigos, para que eles não vissem a fazer interpretações errôneas sobre o livro. Shim’on garante que se ele estivesse presente no momento em que o conhecimento do livro de Enoque estava sendo divulgado, ele teria se colocado contra aqueles mestres. Falou isso porque tempos depois, alguns que se diziam sábios, obtiveram o conhecimento deste livro para levar muitas pessoas a uma adoração estranha, afastando as pessoas do caminho do ETERNO. Eis o que ele disse:

Rabbi Shimʼon disse: ‘Se eu estivesse vivo quando o Santo, bendito seja Ele, deu à humanidade o livro de Enoque e o livro de Adão, eu teria me esforçado para impedir sua disseminação, porque nem todos os homens sábios os leram com a devida atenção, e assim extraia deles idéias pervertidas, tais como desviar os homens do Altíssimo para a adoração de poderes estranhos. Agora, no entanto, os sábios que entendem essas coisas as mantêm em segredo e, assim, se fortalecem no serviço de seu Mestre.” (Zohar 1: 72b).

O professor Daniel Boyarin também usa registros sobre o livro de Enoque, sobre a visão do Filho do Homem, e diz que o Filho do Homem é visto como um Ser Transcendental que pode ser adorado. Por mais que não creia em Yeshua, registrado em seu livro que muitos dos antigos judeus aceitaram Yeshua como sendo o ETERNO porque sua fé e expectativas os levaram a crer assim, tendo em mente que o debate sobre a divindade do Messias já ocorria antes mesmo de os Evangelhos serem escritos:

O que aprendemos disso é que havia controvérsia entre os judeus sobre o Filho do Homem muito antes de os Evangelhos serem escritos. Alguns judeus aceitaram e alguns rejeitaram a ideia de um Messias divino. As Similitudes [do Livro de Enoque] são evidências da tradição da interpretação do Filho do Homem como uma pessoa divina, a tradição que alimentou o movimento de Jesus também. Só séculos depois, é claro, que essa diferença de crença se tornaria o marcador e a pedra de toque da diferença entre duas religiões.

(…)

Em primeiro lugar, encontramos a doutrina da preexistência do Filho do Homem. Ele foi nomeado antes mesmo de o universo existir. Em segundo lugar, o Filho do Homem será adorado na terra: “Todos os que habitam na terra se prostrarão e adorarão diante dele […]”. Terceiro, e talvez o mais importante de tudo, no verso 10 ele é nomeado como o Ungido, que é precisamente o Messias (hebraico Mashiach) ou Cristo (grego Christos). Parece bastante claro que muitas das idéias religiosas que foram sustentadas sobre o Cristo que foi identificado como Jesus já estavam presentes no Judaísmo, de onde surgiram tanto o círculo de Enoque quanto os círculos ao redor de Jesus.” (Daniel Boyarin, Os Evangelhos Judaicos; A História do Cristo Judeu; 2012, Página, páginas 77 e 80). Título original: The Jewish Gospels; The Story of the Jewish Christ.

Daí, aparentemente na visão desses autores, o livro de Enoque não foi adicionado ao cânone e foi guardado em segredo pelo simples fato de que era um livro enigmático, e se usado por leigos, poderia interpretar seus escritos incorretamente, criando deturpações. Além disso, continha fatos que davam respaldo à crença no divino messias, dando força à pregação dos discípulos de Yeshua. Desse modo, todas as autoridades judaicas que não estavam de acordo com a pregação a favor de Yeshua poderiam muito bem se reunir e concordar que o livro de Enoque era ameaçador, razão pela qual o livro permaneceu fora do cânone, passando a ser visto apenas como um mero livro apócrifo. Assim, fica evidente que o Livro de Enoque já havia sido explorado antes, durante e depois da ressurreição de Yeshua, deixando evidente que, em certos contextos, o livro era lido e considerado relevante para a fé.

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